29 de novembro de 2009

Carne do Alguidar

Enquanto almoçava, uma senhora de 82 anos, que tinha vivido em Lourenço Marques, contava-me assim:
- Um dia a PIDE - que agora já não existe, ou existe mas com outros nomes - foi lá à vidreira. Andavam à procura de uns pretos. Mas o que é que eles sabiam de política? Eu vi-os a levarem o homem, que era caminionista, vê bem, e custou-me tanto...

Expressa-se uma dinâmica muito particular neste discurso, de comiseração e simultâneo rebaixamento. Mas acredito que não foi propositado.

24 de novembro de 2009

Fibromialgia

A morte, a velhice e a deficiência como entretenimento. Raios partam a televisão.

Puede causar asfixia

Si que puede. Asfixia causada por el entusiasmo de un nuevo juguete.

Já não sentia isto há um tempo, em especial porque há uns quatro anos que não tinha uma boneca por estrear nas minhas mãos, para mim. Desde há 17 anos que a componente de fascinínio tem vindo a aumentar a cada nova embalagem, a cada modo cada vez mais intrincado de prender as bonecas à caixa. É um desafio sem igual. Os elásticos, a fita-cola, os encaixes... Felizmente deixaram de coser o cabelo a uma tira de plástico e subsequentemente ao cartão; menos trabalho. Mas juro, isto é só para gente grande.

Quando se consegue soltar a boneca ocorre todo um ritual complementar. Confirma-se a não existência de roupa interior, a versatilidade das articulações, tiram-se os sapatos, solta-se o cabelo.

E fico para aqui a salivar sobre todas as coisas novas que vou poder fazer com ela, com pernas articuladas mas pés de sapato de salto alto. Aprovo a lógica "ball-jointed doll" no mundo da Barbie. Felizmente, só os mais delicados vão conseguir conservá-las.

Os restantes - sim, miudinhas a partir dos 3 anos, estou a falar convosco - preparem-se para terem bonecas manetas aí por casa. Ahah.

19 de novembro de 2009

Instituição do lançamento de bandas como desporto olímpico

- Ela é mesmo baixinha e quando disse que o meu cabelo estava grande demais eu disse que era inveja porque ela queria era ter o cabelo à cigana...
- Eu também pensei isso, confesso.
- Hmm... Qual será a taxa de ciganos anões?
- Não sei, mas deve ser baixa!

16 de novembro de 2009

King George III and his prophyria

Hoje li uma coisa semi-interessante. Por ser trabalho perde parte do entusiasmo que a leitura lúdica teria. Mas cheguei a uma conclusão.

Os arrumadores de carros e as prostitutas de rua têm ambos funções - arrumar carros, por um lado, e absorver as pulsões masculinas, por outro, para que a boa mulher em casa sirva apenas as funções de reprodução, defendidas pela Igreja e pela Manuela Ferreira Leite, sem ser profanada. Mas não é o desempenho destas funções ou o dinheiro que se dispende ao requerer estes serviços que os faz serem condenáveis pela opinião pública. É, sim, o lado inestético da sua existência, as características que se distinguem ao longe e, pior, a inegável associação das suas funções ao mau funcionamento do sistema.

O sistema ora falha por não conseguir exterminar ou esconder estes indivíduos que atormentam "as pessoas decentes" ou por não conseguir a salvação destas almas penadas.

Seja como for, como dizia um socio-sexólogo conceituado "a prostituição é mais do que a recriação do infiel", é o modo através do qual se alivia a solidão, o modo pelo qual se obtém satisfação sexual que de outra forma teria de ser arrancada à força. A prostituição é um pacificador social. Perverso.*




*Este textículo contou com a preciosa reflexão de D.M., músico, artística gráfico, colunista, caçador de talentos, encantador homem de fato que faz as delícias das senhoras lá do trabalho.

11 de novembro de 2009

A Batalha

És demasiado especial para seres da cidade,
de certeza que moras na periferia intelectual,
para onde se viaja de comboio apenas em horas de ponta.
Fora de horas o comboio não passa lá.
Só passa quando já é de noite, quando a viagem é cansativa,
quando não se vê o caminho nem os armazéns ardidos, de produtos inflamáveis.
Passa depressa mas pára nos semáforos da estrada onde não passa.
Faz rotundas e sai da autoestrada até à pedreira gelada.
Ouves comigo os badalos do gado,
vês os desenhos nos vidros embaciados
e deixas a minha vaca pastante ser raptada por extraterrestres.
És cruel.
Já não é a primeira vez que raptas a minha vaca.

5 de novembro de 2009

Rinocerontes Lanudos do Paleocénico

As futilidades da vida parecem ser, amiúde, as que provocam mais prazer e entretém. Prova viva de que somos tudo menos racionais. Ou que tentamos expressar rasgos muito esfarrapados de racionalidade pelas vias mais ridículas.

O "debate" gira em volta de umas irmãs espanholas que apareceram numa espécie de Operação Triunfo muito mal vestidas daquilo a que, aqui no círculo, se apelida de "LOLitas". Pretendemos não só identificar o estilo, como também ridicularizá-lo.

Dizia uma expert no assunto que ser LOLita no Japão já é perturbante quanto baste. Mais arrebatadoramente inquietante é ser LOLita em Portugal ou, pior, em Espanha, como vim a confirmar no outro dia. Não, não. Nas Canárias, ah pois.

É sarcástico como foi na noite do "treat or trick" que uma estudiosa da cultura espanhola decidiu assustar-me com este vídeo.

España no está preparada para el Gothic LOLita

Há pessoas que se ridicularizam porque não sabem os "como" e os "quando" adequados para fazer as coisas. E depois são gozadas. Claro.

3 de novembro de 2009

acefalia

deduzo que morreste de vez
confesso que me dá muito prazer

o descer do caixão
naqueles cemitérios aborrecidos
onde as góticas apanham sol
e as velhas põem as flores de plástico a corar

ficas mesmo bem na
tua nova casa
toda branquinha
de mármore importado de estremoz
para este mundo à parte que é a cidade

ninguém te vai pôr flores
sei-o porque não vão encontrar a tua campa
vão arrancar-lhe as letras e grafitar a foto até pareceres um buraco negro
e depois vais ser uma Jane Doe de cemitério
um mistério de culto
cheio de excêntricos à tua volta
à espera da hora de fecho
para levantar a tampa de mármore
e te exumar pelos cabelos

os ossos ainda vão estar presos uns aos outros
vão-te passear pela terra batida
à sombra dos ciprestes
à sombra do luar
vão descrever círculos com a tua anca
e lançar os teus ossos aos cães

Aposto que eles os vão vomitar.
És de fraca qualidade.