30 de abril de 2008

Desporto 2

A minha infância foi pautada, senão mesmo quadriculada, por uma série de eventos casuais que me impediram de entender algo de desporto, tanto na prática como na teoria. O primeiro desses eventos foi ter nascido mulher; o segundo refere-se à minha incapacidade de trabalhar em grupo; o terceiro, à minha falta de coordenação motora; e podia continuar...

[piada básica] Ainda assim houve uma altura em que estive quase a pensar ir para um qualquer desporto de combate, mas desiludi-me quando me apercebi que só poderia dar um bom saco de porrada.

Com os anos, porém, além de ter aprendido a gostar de todas aquelas coisas que as "meninas" gostam, e é suposto que gostem - ginástica rítmica, patinagem artística, natação sincronizada e atletismo em geral - comecei a desenvolver uma atenção desinteressada por qualquer desporto que estivesse a ser noticiado ou acompanhado no único canal tragável da televisão pública portuguesa. Cheguei, inclusivé, a ver hipismo comentado por José Cid, senhor que merece o meu maior respeito, não só pela elegância suína com que devora pastéis de nata mas também pelo facto de possuir, ou ter possuído, um hipódromo na Mealhada. Faziam-se corridas de leitões que era uma delícia! E os perdedores eram, de imediato, assados. Bem, não de imediato. Primeiro fazia-se a entrega de prémios.

Mas onde eu queria mesmo chegar era à alarmante questão da ainda insuficiente variedade de modalidades desportivas transmitidas em canal aberto.

E o ténis-de-mesa de culpa?
E as fantásticas, gloriosas, titânicas olimpíadas de desmotivação?

Se existe uma bebida para os "desportistas do dia-a-dia" (está muito giro o anúncio, com pessoas a carregarem caixas de cartão vazias algures num rua de Lisboa, essa miserável capital do Império), por que não se transmitem os eventos desportivos que tão bem espelham esses dilemas?

Existem por aí programas televisivos que, com um pretenciosismo alucinado, reclamam o papel de emissores da desgraça alheia e pensam-se capazes de se sobrepor ao bom do ténis-de-mesa de culpa com as suas insubstituíveis grandiosidade e sentimentalidade quase católicas. Além disso, e uma vez que estes ditos programas cumprem muitas vezes a função de "Fundação Caridosíssima do Sagrado Corção de Maria", não vão de todo ao encontro da ideologia que guia, desenfreadamente, a culpa e a desmotivação.

Pede-se, implora-se, roga-se! um canto na televisão pública onde se possam escutar as lamúrias eloquentes de [pseudo] intelectuais, capazes de criar verdadeiros dilemas nas pequenas, mirradas, mentes nacionais.

Para quê os blogs? A nossa população está o suficientemente envelhecida (ou perdida) para só já ser movida por uma caixa de plástico ligada ora a um cabide, ora à tampa de uma panela no telhado.

A investida será feita!

29 de abril de 2008

A cura, a purga, a salvação - não as desperdicem

Existem momentos, verdadeiros momentos de iluminação, em que a genialidade de uma revelação arrebatadora consegue iluminar um quarto às escuras. Ou uma aldeia pequena, abandonada aos gatos e sem electricidade.

São aqueles momentos em que nos apercebemos, em que me apercebi, que tudo é auto-infligido e, portanto, parte de uma escolha. A dor, a anorexia mental e física, o sofrimento e a vitimização do eu são tudo mecanmismos que se auto-decidem, se auto-regulam na aparente confusão.

É emocionante descobrir, sem choque nem repulsa, que me rijo em volta de entranhas e bárbaros flashes emocionais, como quem fotografa uma feira de enchidos. A cada dia que passa, vou conseguindo, com alegre e galopante facilidade, rodear o meu pulso com o polegar e o mindinho. A cada dia que passa, vejo o meu ventre a tomar os contornos de uma Eva quinhentista, enquanto as costelas se tornam mais salientes e é possível contá-las com o olhar.

Que ninguém me toque pois a minha pele está áspera, como o meu carácter. Que ninguém ouse aproximar-se com pedidos de intimidade; seria como violar um cadáver. Que ninguém procure o meu cheiro. Só já se sentem os ciprestes e os crisântemos.

Que ninguém conspurque a minha campa rasa de mármore pois nela está selada toda a raiva e todo o desiquilíbrio que não puderam ser arremessados contra qualquer massa humana.

Que ninguém conceba sequer a ideia de me salvar pois eu cheguei a ser quem sou e não me decepcionei.

Não preciso de ser curada.

28 de abril de 2008

O "convencidismo" ideológico

Ó
D
I
O

Pensamentos, palavras, actos e, sobretudo, omissões

Aos olhos da Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana sou uma pecadora de alto calibre, algo na linha de um lança-rockets. Não posso esconder o meu orgulho por tal classificação.

Desde pequena que me foi impingida a religiosidade como forma irrefutável de vir a ser alguém. Lembro-me das tentativas da minha mãe, que insistia em que eu fizesse a oração da noite. Ou da triste continuidade dada ao meu catecismo.

Desde cedo, muito cedo, porém, entendi que a fachada religiosa, mas não de um modo exacerbado, era o caminho mais límbico para cair nas graças da minha avó. Sou, hoje, a sua "netinha" (de resto são só rapazes...) e gozo do estatuto de ter sido sempre a mais adorável, inteligente e promissora.

Bem, na altura era.

De certo modo, apesar de sentir que a minha avó já deu pela falta de Deus na minha vida - como aquele amigo que vinha sempre às festas de anos e, de um momento para o outro, deixou de aparecer - faço ainda algumas aparições genialmente teatrais nas leituras de Domingo de Páscoa, lá na aldeia.

The thing is, eu sou, no fundo, uma pecadora. E que regozijo, meus amigos! Que alegria! Não estar presa a muitas das [ridículas] convenções sociais que vêem o amor livre como putice, o pensamento livre como leviandade mental, a expressão oral livre como algo muito além do que Deus pede para que nos "multipliquemos". Do que sou mais partidária, confesso, é da omissão. Omissão de tudo e de mais alguma coisa, até de comida, de vergonha, de dignidade.

Sinceramente, é assim que se chega à loucura.

22 de abril de 2008

Hydrocephalus

Quando chegamos a ser aquilo que realmente somos, acabamos por descobrir que o que somos em nada corresponde àquilo que achávamos que éramos.

Porque todo o ser humano é naturalmente mórbido, cruel, pessimista, derrotista e assassino, não existe salvação para as almas.

Sorte daqueles que nunca, nem no seu leito de morte, descortinam o veludo púrpura do que realmente são. Em paz morrem os imcompletos.

Nos caixões cravam as unhas os que se olharam ao espelho uma noite e nele viram tudo o que sempre repudiaram nos outros.
Nessa noite não dormem.
Até morrerem nunca mais voltam a estar vivos.

Columbofilia, Columbofobia, Columbomagia - do amor, ao medo, à mistificação

Muita gente está familiarizada com os "Five Stages of Grief". Introduzo, em mais uma noite sem sono, uma classificação revolucionária que resume as fases de sofrimento antes da morte, antes de qualquer contacto real e justificadamente classificado como uma situação de fase terminal.

A fase da Columbofilia refere-se ao estado em que as mentes ingénuas, medíocres, entram em contacto com algo que lhes parece fascinante mas que não conhecem de todo (o amor, os pombos).

A segunda, a da Columbofobia, remete para o assustador momento em que se descobrem os defeitos da coisa outrora fascinante (o amor, os pombos). O afastamento é eminente e ocorre a passos lentos, de costas, até as palmas das mãos encontrarem uma parede branca onde pousam. Depressa se elevam à boca aberta de medo.

A terceira e última fase ocorre quando, do medo, surge a derrota e se vive na ridícula e infundada esperança de voltar a sentir amor, sob a forma de um príncipe encantado, ou de voltar a gostar de pombos, durante um espectáculo de ilusionismo.

21 de abril de 2008

spina bifida - do que não se vê

Que resta na ausência da inquietação? Será que sobrevive a eloquência ou que se perde o encanto do desespero?
Vejo-me a braços com novos projectos, cada um deles destinado a fracassar ou a ficar incompleto. Não consigo evitar. Do mesmo modo que não consigo superar o que, dizem, é patológico, endémico, e me obriga a entreter as mãos para evitar pensar. A ideia assusta-me. Sinto que estou a fugir, com a estúpida elegância de uma orca a sufocar numa loja de cristais, àquilo que profundamente me perturba.
Fecho-me em infantilidades. Conjugo-as, corrompo-as, com imagens eróticas e planeio trabalhos de ligas numa Barbie dentro de uma televisão verde, de cartão.
Com o seu ar angelical, quero mostrar dela o que não aceitam que mostre de mim. Quero que vejam nela o que não concebem em mim.

Queria posar nua, cabisbaixa, o olhar acutilante posto na câmara.
Queria ser vítima, actriz, usada, abusadora e arrepender-me no fim.
Queria ser eu, ele, sem ele, em mim.
Queria calar, engolir, esconder, fugir.

Mas não posso, é disso que me tentam curar.

19 de abril de 2008

Cleft palate

Olho à minha volta e vejo os despojos incompletos de uma freneticidade agoniada.
Tudo por fazer.
Tudo a meio.
Tudo sem fim nem esperança de se sentir completo.

Chove. As bonecas da minha mãe precisam de capas. Mas a minha inércia cruel fá-las sofrer, de vestido de Verão ou combinação, dentro do roupeiro. Imagino o que dirão de mim, que as voto a estes abandonos cíclicos como, no fundo, me voto a mim.

Ainda assim, se toda a gente votasse em si própria, o mundo seria um caos. Existem, felizmente - dentro desta lógica deplorável -, pessoas que abandonam os outros e que, deste modo, lhes poupam o trabalho que é abandonarem-se a si próprias.

Uma vénia a essas pessoas, que fazem com que a degradação interior não se manifeste a uma escala tão alarmante.

Carne para canhão

Vizualize-se. Uma pele tão ebúrnea que o sistema circulatório fica exposto sem piedade.

Vizualize-se. A remoção do último tom rosado dessa pele com a passagem de um algodão embebido, embriagado, em água oxigenada.

Vizualize-se. Uns lábios tão vermelhos e carnudos que destoam da expressão cadavérica do olhar, da compressão ressentida, duramente ressentida, de um maxilar contra o outro. Até que se sentem os microscópicos estilhaços do esmalte.

Vizualize-se. A saliência doentia de cada osso que pode sobressair. O desgaste da pele, qual tapete espezinhado, a querer romper onde o cálcio empurra.

Vizualize-se o desespero que é vizualizar tal coisa. Sinta-se, no fundo da mente, um grito surdo e escancarado. Saboreie-se aquela saliva com a consistência de açúcar líquido mas com a amargura do desespero infundado.

Sinta-se, no fundo da alma, sem pena nem compaixão, o nó na garganta, que castra o pensamento e a vontade.

Ouça-se o gemido trémulo e angustiado.

Conseguem agora sentir o cheiro a cadáver?

18 de abril de 2008

Uma oliveira do Alqueva e seis canas de bambu

Por falar em criações e condições para a biodiversidade, tenho-me visto obrigada a reflectir sobre as potencialidades do nosso território nessa matéria.

Considere-se:

  • Os pandas morrem na China por falta de bambu, por apoiarem o Tibete e porque dão fatos de carnaval giríssimos. Nós, nos nossos espaços verdes urbanos, contamos sempre com meia dúzia de canas de bambu, apoiamos o Tibete só porque temos pena de algo de que não estamos na verdade a par e para o Carnaval gostamos é de palhaços. Portugal é um bom local para criar este tipo de ursos budescos.
  • Além disso, temos a situação do koala. Bichinho de habitat ameaçado, vê-se muitas vezes esfomeado ou chamuscado, quando as fagulhas dos incêndios australianos lhes alcançam as orelhinhas farfalhudas. Nem de propósito, Portugal tem conseguido fazer decrescer o número de incêndios a cada ano que passa [porque já não vai havendo nada para queimar] e contamos com uma extensa e invasora população de eucaliptos! Ou "cliptos", como diz o meu avô. Imagine-se o negócio que não seria para as empresas madeireiras vender as inúteis folhas aos desgraçados e desenquadrados animais. Imagine-se, também e com calma (que a imagem requer ginástica mental), um koala encolhido numa oliveira no Alqueva e com um entrançado de folhas de eucalipto (do género dos que se fazem às cebolas) dependurado de um ramo, à espera de ser trincado. Sim, à espera. Que os animaizinhos em vias de extinção apresentam perfis claramente suicidas. Nem pela própria vida perdem aquela lentidão de totem.

Chuva sobre telhado de zinco

Enquanto tacteava distraidamente o balcão da casa-de-banho, à procura do meu creme de noite, palmadeava, com a outra mão em forma de concha, a nádega direita. Sentia o relevo da roupa interior, sentia as pequenas formas, que no fundo são flores aveludadas de quatro pétalas, daquele rosa-inocência, aquele rosa-sensualidade-virginal.

Tacteando e palmadeando, a minha mente concentrou-se, escolheu concentrar-se, no frio polar da minha boca, acabada de escovar. Creio que nas suas condições climatéricas poderia fazer criação de ursos polares e garantir-lhes um gelo sólido onde pousar; sólido e frio como só uma mente irrequietamente perturbada consegue oferecer.

Escovei também o cabelo mas não creio conseguir criar lá nada, nem toupeiras.

16 de abril de 2008

Momento escatológico mas com classe

Adoro a simplicidade com que alguns animais comem enquanto defecam.
É uma espécie de "ciclo sem fim", à "Rei Leão" da Disney, mas com toda a dureza da realidade natural e sem a voz do Elton John. Remarkable.

"Insónia" ou "Como aprendi a aproveitar a noite e deixar de me preocupar"

É recorrente, demasiado, dizem os médicos, acordar a meio da noite e não conseguir voltar a adormecer. O processo arrasta-se durante uma hora ou mais mas entretanto compreendi que podia tirar partido desse tempo e conhecer-me enquanto o sono não voltava.
Em posição fetal, ou fatal, para mim, descobri a aflição de sentir cada centímetro cúbico da minha cabeça a doer. A vontade foi de a prender no meio dos joelhos e pressionar, pressionar, até que os meus olhos dependurassem da borda da cama. Resolvi não o fazer. A minha ambição por ter novas visões do mundo não é assim tão grande.
Tentei depois a posição que ajuda o espírito a empreender uma viagem astral. Já eu ia na rua de cima quando senti o meu nariz a escorrer água. Perdi a concentração, que com tanto esforço tinha conseguido, ao ver-me obrigada a acabar com o irritante gotear. Tratei do assusto com a manga do pijama. Descobri, então, que a minha anca está tão saliente e, aparentemente, frágil que podia ser confundida com a ponta de uma lança pré-histórica.
Acabei por adormecer, algures nesta arqueologia às escuras, a boca no ansaime que me impede de comer os meus próprios dedos durante a noite e, eventualmente, de me engasgar com eles. É bonito, o ansaime, de couro castanho e com umas fivelas lindas na nuca.

15 de abril de 2008

Sem rei nem rock, tudo a eito, até ao fim

A Toupeira dispensa todas as apresentações que se seguem. Dispensa etiquetas, rotulações e atribuições de pedigries que nada mais fazem do que resumi-la a uma insignificância com que não se identifica.
A Toupeira vive do ar, do escárnio, da maldicência sarcástica e acutilante, tudo alimentos sem gordura e que lhe garantem uma vitalidade assinalável e uma imagem sublime.
A Toupeira, eu, vai hoje começar a esgravatar nos sótãos imaginários criados pela insalubridade dos ambientes em que se move.