15 de maio de 2008

um mês depois

Remember me as a time of day...

Arte

Hoje, às seis da manhã, dei-me conta que os gatos, além de extremamente inteligentes e contratáveis para uns quaisquer serviços secretos de uma grande potência, têm uma sensibilidade assinalável para a arte moderna.

Com menos de um quilo cada um, conseguiram exprimir-se em toda a sua genialidade e fazer o que muitos grandes artistas fazem: dar um novo significado às coisas do dia-a-dia.

Eles conseguiram ver a minha cama não como um local de descanço e restituição da beleza natural mas sim como uma sanita.

A-do-rá-veis.

Catapulta IV

Chego ao meu apartamento, dez sufocantes andares mais abaixo, e encontro a Adélia a trepar-me as cortinas do quarto/sala/cozinha/lupanar. Desprendo as patinhas de anzol das pobres cortinas e ponho-a no chão. Ela corre para o Esteves e começa a roer-lhe uma orelha. Daqui a dez minutos estão cansados e vêm deitar-se ao fundo da minha cama. Faço um chá, enquanto vejo a Adélia a endireitar-se muito, pronta para atacar. Ferveu a água.

Ponho a chávena em cima da minha mesa-de-cabeceira e deito-me à espera que o chá arrefeça. Acabo por adormecer, a contar os fungos do tecto, naquele canto, ali.

O que me consola é que as baratas não voam.

Catapulta III

- Está boa? - eu aceno, monossílabo algo - Está magrinha, tem de comer se não qualquer dia não consegue vir até cá acima pagar-me - ri-se. Mantenho-me impávida, ela não tem piada e o prédio não tem elevador.
- Não se preocupe, dona Irene. Comida e falta de fome não me faltam... - e lança aquele olhar condescendente dela.
- Vai filha, que deves ter muito que fazer.
- Então até logo, dona Irene.
- Até logo...

Enquanto desço as escadas, tento separar os cheiros que exalam das minhas botas de borracha. Já estou imune à água-de-rosas, tanto que já nem conta como um cheiro para mim. Pelo menos um que valha a pena. Sinto... sumo de laranja, salsichas frescas queimadas. Maionese passada de validade. Raios, não sei como é que ela sobrevive lá dentro.

Catapulta II

Por isso comprei umas galochas, para quando vou à casa de banho e quando vou pagar à senhoria.

Tem um apartamento nojento no último andar do prédio. Acumula sacos de plástico com coisas a apodrecer, às vezes ainda a mexerem-se, e encharca tudo com água de rosas. É uma senhora peculiar, para não dizer mesmo "assustadoramente estranha e arrepiante".

Não lhe consigo ditar uma idade; é possível que tenha nascido no início do século XIX. Pinta o cabelo grisalhíssimo de um amarelo semelhante ao das canetas fluorescentes. Para dizer a verdade, toda ela é um enorme neon ambulante, os olhos borrados de azul ciano e os lábios pintados fora da sua linha, a vermelho vivo, para parecerem maiores. Adora pedras e âmbar. Ouço-a muitas vezes dizer que também adora animais mas nunca lhe vi nenhum em casa, a passear-se fora dos sacos. Fala muito lentamente, como se o fim não fosse claramente eminente.

Catapulta I

É um sentimento.
"Sinto-me catapultada", para dentro, para fora - sempre com mais força-, para baixo. É como viajar no tempo. Agora estou aqui, sou catapultada e dou-me rapidamente conta do que realmente se está a passar. A tal iluminação da mente, que é tão dura e fria como os mosaicos da cozinha. E igualmente conspurcada. E, do mesmo modo, quem fez a sandes de fiambre e queijo foi embora sem arrumar nada.

Que imundice. Tenho moscas nos olhos. Não me levanto da cama há dias senão para ir à casa de banho. Os canos do andar de cima estão expostos na minha casa e, quando tento responder ao apelo da natureza, como seja urinar, faço-o sob o fervilhar do tétano e das descargas intestinais de uma pessoa que não conheço. Nos dias maus, os canos transpiram; já se formaram estalagtites.

4 de maio de 2008

Para todos os efeitos, era uma vaca

Numa tentativa bem frustrada de oferecer uma prenda não banalizada à minha mãe - que não é só mãe mas também quarentona, neste lindo dia de Maio - decidi-me a fazer-lhe um elefante.

É o animal favorito dela, possivelmente uma reminescência do tempo que passou nas Colónias enquanto era criança.

Não podendo escapar ao olhar controlador da entidade parental feminina, vi-me obrigada a dizer que, aquilo que eu estava a fazer, era uma vaca. Fraca tentativa de encobrir o meu plano maquiavélico para uma fantástica prenda de anos, devo confessar.

A verdade, nua, crua e dura, foi que o elefante acabou por parecer uma tentativa pouco esforçada de fazer um paquiderme rosa e laranja, e que em nada se parece com o dito animal.

Na minha opinião, tinha saído melhor se fosse, de facto, uma vaca.